Sobre meninos e armas
24/07/12 07:00WASHINGTON – A segunda emenda à Constituição dos Estados Unidos, datada de 1791, garante à população o direito de manter e carregar armas. “Sendo uma milícia bem regulada necessária para a segurança de um Estado livre, o direito das pessoas de manter e portar armas não deve ser infringido.”
Em tempos de tiros em Aurora, vale evocá-la.
A Constituição dos EUA é uma espécie de livro sagrado. Questionar o anacronismo de algumas de suas proposições — como o porte de armas em uma época em que o país, recém-independente, carecia de um Exército de fato — é uma heresia passível de pena de morte política, mediante a acusação de traição à Pátria. É também um documento perfeito, e exercícios para interpretá-lo não raro terminam em celeumas nacionais e trocas de acusações graves.
Portanto, não veremos o presidente nem seu adversário republicano, Mitt Romney, desferindo qualquer pergunta a respeito do documento que possa soar como ofensa. Na página de campanha de Barack Obama, não há menção ao assunto. Na de Romney, há um tópico “Direito às Armas”, com uma defesa da segunda emenda.
Após a chacina de Aurora, o republicano afirmou que mais controle não faria diferença no desfecho. Já o democrata admitiu que mais critérios na hora de vender poderiam ter evitado que o suspeito, James Holmes, tivesse acesso à parafernália que teve. Mas nada que realmente atente contra aquilo que a Constituição garante.
Ironias à parte, eu sou fã da Constituição americana. Admiro que eles não tenham entulhado o documento com 789 emendas nem o tenham refeito a cada mudança do vento. Mas considerá-lo como algo escrito em pedra, imutável, pronto para ser interpretado ao pé da letra para todo o sempre me parece tão lógico quanto qualquer fanatismo religioso.
Além do contexto histórico, é preciso levar em conta que em uma sociedade menor, é mais fácil saber o que cada um faz com sua arma. Ou quem está comprando armas.
Estamos falando de um tempo em que existiam milícias, e elas eram necessárias. Mais ainda: em 1791, o país tinha 3,9 milhões de pessoas, das quais 900 mil — no máximo — tinham a prerrogativa do porte. Hoje, são 220 milhões (311 milhões de habitantes menos cerca de 90 milhões sem idade legal, o único critério de corte).
Não está na hora de revisitar a segunda emenda, e impor ao menos algum tipo de critério para a venda?
Nessa hora de comoção, muita gente mira na cultura americana, na banalização da violência. Não acho que a violência esta esteja mais banalizada aqui do que em qualquer outra sociedade do lado de cá do planeta.
Explicações fáceis surgem em profusão (e sobre isso, Vinicius Mota escreveu um bom artigo na Folha desta segunda). O problema é que elas levam o debate para o lado errado.
Sim, “É a liberação das armas” poderia facilmente entrar nessa lista: as mortes por arma de fogo nos EUA somaram 8.775 em 2010 (último dado disponível), enquanto no Brasil, um país onde o porte de arma não é liberado, foram 35.233.
Mas a questão, lá e cá, vai além da lei e além do espírito dos tempos. O debate pode ser educativo, mas a questão imediata é controle. E o ponto nos EUA é que o controle passa pela mudança na lei, já que sem institucionalização, ficaria difícil contornar a sombra da segunda emenda.
Poderíamos aproveitar a chance para debater sobre as mortes que não saem no noticiário, e as razões pelas quais elas comovem menos (identificação é a palavra-chave aí). Mas isso também seria desviar o assunto.
Qualquer chacina a menos, cá e lá, qualquer matança que pudesse ser evitada, cá e lá, deveria ser evitada.
É um exercício hipotético, mas se considerada a matemática, e se considerado que aqui normalmente se tenta fazer cumprir a lei, apostar que os EUA com controle de armas teriam menos mortes do que sem é, no mínimo, um palpite embasado. Na última pesquisa do Gallup a respeito, no ano passado, 54% dos americanos eram a favor de algum tipo de controle mais severo. Mas só metade deles o diz com todas as letras.
Não faz mais sentido usar a suposta sacrossantidade da Constituição como barreira refratária.
*
Interessante notar que o lobby antiarmas nos EUA vem caindo, enquanto o pró-armas recuou um pouco, mas muito menos.
Em 2010, os grupos antiarmas doaram US$ 7.600 a políticos nos EUA, enquanto o pró-armas encheram os cofres dos candidatos com US$ 2,87 milhões, 16% dos quais foram para democratas e 84%, para republicanos, segundo o Centro por uma Política Responsável.
Em 2000, seu auge, o lobby antiarmas havia doado US$ 581 mil, ou 76 vezes mais do que hoje, enquanto os pró-armas doaram US$ 4,3 milhões, menos que o dobro. Em dez anos, relação entre um e outro passou de US$ 1 antiarma contra US$ 7,40 pró-armas para US$ 1 antiarma contra US$ 377 pró. Alguma ideia do porquê?
* O título deste post é uma alusão ao diretor Clint Eastwood, conservador, durão e a favor do controle de armas.
(Se você clicou em busca da cobertura do massacre do cinema, leia aqui a ótima reportagem do Raul Juste Lores no Colorado.)
Muito interessante a reportagem, revelando as posições ideológicas marcantes na sociedade americana.
Aqui em florianópolis, outrora pacata e hoje violenta, um assalto foi frustrado em um restaurante por um delegado armado que jantava com a família – ele atirou num dos assaltantes, na perna. Por outro lado, desde 2010, já tive 2 amigos assassinados, por bandidos de rua, desses que não compram armas por vias legais.
Sei que você fala dos USA, Luciana, mas, no Brasil, falar em controle de armas soa como provocação petista. Feliz de você aí, no primeiro mundo: esse partido e todo o políticamente correto a reboque está esgotando a paciência de muitos e criando ambiente para uma nova ditadura.
Luiz, não me parece que falar em controle de armas seja uma questão partidária — eu nunca vi nenhum partido defender a liberação como plataforma, mas posso estar enganada. Realmente não acho que mais armas seja a solução, acho que o que deveríamos ter é exatamente mais controle para que elas não caiam nas mãos de quem não deve. De qualquer forma, prefiro deixar a política brasileira para vocês e para a hora de eu votar, o blog realmente é para falar dos EUA. Abs!
A ”chance” de alguém ter um acesso maior não importa, e sim, o uso delas.
É provado estatisticamente que, mair controle = menos vendas, menos vendas = maior violência.
Eu não sou a favor da armas simplesmente pq gosto, e sim pq é provado que elas trazem mais segurança do que ao contrário.
Kovac, de quais estudos você está falando? Eles comparam a mesma sociedade, ou sociedades diferentes? (pergunta real, fiquei curiosa mesmo). abs.
Luciana,
Ele está se referindo principalmente aos estudos de John R. Lott Jr, publicados no Livro “More Guns, Less Crimes”. Lott estudou as estatísticas criminais dos EUA entre 1977 e 2005 e diversas legislações federais, estaduais e locais sobre posse de armas por civis e concluiu que os locais mais violentos eram justamente os que mais restringiam a posse de armas por civis.
Otto, superobrigada. Vou olhar o estudo. Abs.
Washgington, que impõe restrições, tem mais homicídios que outras cidades onde as armas são liberadas. O que está em jogo é a verdadeira cidadania onde a previsão constitucional é obedecida. No Brasil o direito de defesa é uma piada pq só bandidos têm armas.
Felizes aqueles que vivem em um país onde a Constituição é uma barreira sacrossanta.
Por aqui a Constituição não vale nada (o próprio STF rasga algum pedaço de tempos em tempos) e veja o resultado.
Sobre o controle rígido de armas, foi feito em Washington e o resultado foi o mesmo que o brasileiro: o cidadão de bem ficou desarmado e a bandidagem continuou tocando o terror.
Joe, acho que o fato de a Constituição não ficar sendo alterada a torto e a direito é excelente. Talvez a Segunda Emenda seja a exceção a confirmar a regra. Mas, de verdade, esta, especificamente, precisava ser revista. Posso ser simplista, mas eu acho que mais armas nas ruas = mais chance para *malucos*, *bandidos* ou seja o que for terem acesso a elas. E o “cidadão de bem”, transtornado, também não pode ser um perigo? E afinal, quem é *cidadão de bem*? O sujeito no Colorado, até a semana passada, iria se encaixar perfeitamente nessa situação. Eu não acho que proibir as armas ia acabar com a criminalidade, com as chacinas e com os assassinatos. Mas eu acredito realmente que qualquer morte evitada seria um motivo bom o bastante para aumentar o controle. E controle não é só na lei, controle é fiscalização, policiamento (no sentido amplo da palavra), coisas que nos faltam no Brasil. Enfim, como vc pode ver, eu realmente tenho mais perguntas do que respostas nesse caso. Mas, pelamordedeus, munição pela internet deixa a coisa fácil demais. (Sobre os cidadãos de bem e as armas, aqui vai um bom artigo: http://www.theatlantic.com/technology/archive/2012/07/the-philosophy-of-the-technology-of-the-gun/260220/#.UA3uxLrNQjg.facebook). Abs.
Eu creio que depende da mentalidade e a educação do povo. A Suíça tem mais armas per cidadão do que qualquer país do mundo civilizado e não tem estes tipos de acidentes.
Do outro lado da moeda eu não conheço a Constituição Suíça.
De qualquer forma a Constituição dos EUA não vai mudar.
José, na verdade as estatísticas são controversas, em alguns rankings é os EUA. Não vi ainda um ranking em que pudesse confiar. De qualquer forma, não é um fator isolado que aumenta o número de mortes, concordo com você. Mas também acredito que a redução das armas nos EUA reduziria o número de mortes. Muitos dos assassinatos aqui não são cometidos por criminosos comuns (o latrocínio tão banalizado no Brasil aqui é raro). Nem vou perguntar se alguém aqui acha certo que o cidadão em questão deveria ou não ter podido comprar armas com tamanha facilidade. Seguindo a lógica de quem defende o direito às armas, a pergunta é se alguém armado no cinema poderia ter evitado a tragédia. Eu acredito que não.
Na Inglaterra é difícil demais conseguir armas. Resultado: as taxas de crimes com armas brancas são altas.
No Brasil, assim como era em Washington, o Estado não defende o cidadão e inferniza a vida de quem quer se defender com uma arma de fogo. Aí sabemos que a bandidagem age tranqüila.
Quanto a uma pessoa armada poder ter impedido o atirador de fazer um estrago maior, era bem possível. Já aconteceu isso: http://www.nytimes.com/2002/01/17/us/3-slain-at-law-school-student-is-held.html?pagewanted=2&src=pm
A minha opinião é que o uso de arma deve ser como o uso de carro. Todo mundo deve poder se candidatar e deve haver um controle. Proibição, ou infernização como aqui no Brasil, não funciona e eu rejeito totalmente.
Um tempo atrás vi um programa britânico, que tentei achar agora de todo jeito e não consegui, falando justamente disso. O apresentador comparava as leis de armas de Inglaterra, Irlanda do Norte e EUA. Na Irlanda do Norte e nos EUA a política de armas é liberal e na Inglaterra é proibitiva. O interessante é que a proibição inglesa, de acordo com o programa, viola a Bill of Rights.
Mas o problema no Brasil é a falta de segurança geral, e não me parece que mais armas resolveriam isso. Sobre armas brancas, não dá para comparar o poder de uma escopeta ou de uma semiautomática com uma faca, né.
Eu não sei se o veto total é a melhor solução, queria ver estudos confiáveis a respeito. Toda vez que vejo um estudo, ou ele tem envolvimento de uma entidade pró-armas ou de uma antiarmas. Mas tem de haver controle, Joe. Sua comparação com a carta de motorista é pertinente. Não se emite carta pela internet. Como é que se vende munição pela internet? É extremo demais!
Toda vez que se propõe um contole, muita gente se opõe porque acha que é um atentado contra a segunda emenda. É muito purismo, a Constituição é um belíssimo documento, mas não é perfeita nem atemporal em todos os seus aspectos. Por outro lado, também não é só proibir e achar que está tudo lindo. Não tem resposta fácil, mas eu acho que esse caso, a forma como esse menino conseguiu as armas, é o extremo dos extremos. Tem de ter algum freio. Vou pesquisar sobre a proibição inglesa — e lembremos que nada é isento de erros, a polícia inglesa não usa arma de fogo e taí o caso do Jean Charles para mostrar que erros acontecem. Abs.
Deve se levar em consideração os seguintes fatos:
Área e população de cada país para chegar a média(average) por pessoa que possui armas de fogo..
Se se pode usar a medida de 1 cereja por uma melancia.
José, como disse, ainda não consegui achar um estudo que não tenha ligação com um dos cgrupos de interesse. E a questão não é geográfica apenas, é cultural, social, econômica etc etc etc. Acho difícil comparar países e pegar apenas um dos fatores como explicação, é um sofisma. Abs.
De fato a Sra. tem razão que os EUA per capita tem mais armas que outros países de acordo com a Wikipédia. Sendo que a Suíça é a quarta na lista.
Em cada 100 pessoas + de 88 possuem armas.
http://en.wikipedia.org/wiki/Number_of_guns_per_capita_by_country
José, eu não sei se a Wikipedia está certa, não usaria de parâmetro. Tem listas que apontam a Suíça, tem listas que apontam os EUA. Achei esse número americano alto demais. (Mesmo não significando que 88% têm armas, mas que há armas sificientes no país para que, se cada pessoa tivesse apenas uma, 88% tivessem — só que muita gente que tem, especialmente colecionadores, caçadores etc, tem mais de uma). Abs.